segunda-feira, 19 de outubro de 2009

À tua falta, na noite

Na noite, o teu cheiro nas dobras de minha pele (nos meus poros e nos meus pelos), as manchas que deixaste nas lentes dos meus óculos, o beijo não consumado, a vontade do teu desejo e do meu delírio, e o inverso - meu desejo e teu delírio, nossos gostos.

Meus desenhos desconexos, minhas irracionalidades e dores. Minha falta de autopiedade e concatenação.

A palavra que não foi dita, a frase que jamais será escrita: perdeu-se onde sempre me perco.

É tudo tão óbvio; mas tenho medo, e nego.

Eu que não sei ter. Eu que translado em torno de mim, digo, de eu.

Minha culpa, na noite.

Na noite, a luz que se apaga, o escuro do quarto e a claridade da rua. Nunca há estrelas.

Na noite, tu, teu corpo e tua graça. O som do lá fora.

Na noite, a tua ausência; e, sobretudo, a tua falta.

- Dá-me tua mão, faz-me dormir.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Aviso

– ...
– Quero falar-te disso. Peço que escutes e compreenda. Saibas que se, ou quando, fores, não chorarei, não sofrerei, não cairei. – Não, não quero pintar-me de independente, ou de forte (quem dera fosse), nem quero obviamente que vás, bem sabes – Para, que não é hora de teus jogos. Escuta – É que não somos feitos da mesma matéria – pois claro que sou sentimental, não é isso... escuta... tu sabes, sou inteiro sentimento – não somos feitos da mesma matéria: tu, assim, disforme, tão água, líquido e éter, frágil, na iminência de sofrer (Tão frágil, tão doce). Pois que eu não; sou tronco de um carvalho esquecido à eternidade, calo, casco de tartaruga – sim, ainda que mole por dentro, mas escuta. Não serei viúva de tua partida, por mais que não me refaças... É isso, quando, ou se, fores não me desfarei. Seguirei, assim, inteiro, íntegro, tronco-calo-casco; continuarei sendo. Não ruirei. (Talvez, justamente, por tu não me ruir, de tanto continuar sendo, é que virarei pó). – Calma, terás minhas razões; nunca te fui inconsequente; e quero que te fique claro, e que não tenha dúvidas sobre aquilo tudo que não nomeamos, mas que percebemos e sabemos e sentimos – Não, não digo isso para amedrontar-te, aprisionando-te a mim. Sei do poder do medo (eu que só sei dos medos) e não tenho a pretensão de domá-lo e subjugá-lo às minhas vontades. Digo para avisar-te. E aviso-te por conta de tuas novas manias de incertezas (tão infantis e detestavelmente envolventes. Mas não te culpo, como jamais culpei). Aviso-te para que sejamos sinceros um com o outro – tu que tanto gosta de verdades como apregoa por aí (mas que sempre desfila com uma máscara na face). Mas, sobretudo, aviso-te, porque quero livrar-me de ser o responsável, o Pequeno diante da Raposa. Porque já não levo comigo mais fardos, eu que um dia os carreguei aos montes, me firmando, me sustentando, me movendo em carregá-los; fardos, pesos, cruz, cargas, responsabilidades, estorvos que me racionalizavam; eu que não sabia ser (eu que ainda não sei). Prometi-me não mais levá-los; carrego apenas meu corpo e minha alma, que cá me bastam, e me superam (e me transbordam). – E tu, tu que não me és fardo ou peso, tu que me és graça, pois tu, é essencial que compreendas meu aviso.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Maio

Gosto de Maio, e essa é uma daquelas verdades que sempre foram verdadeiras mas que apenas tardiamente são postuladas como verdades. Clareando, descobri que gosto de Maio. Permito-nos (a mim e a Maio) a metalinguagem e a repetição: gosto de Maio.

Maio não é começo de ano e sua insegurança e desorganização e hesitação; é sedimentação, final de névoa, oito horas. Maio é quase meio, o que assusta pela ligeireza com que, sempre e sempre, o tempo passa, mas o “quase” (tão terrível muitas vezes) tranquiliza; Maio não é meio, nem metade final.

Maio não tem paridade, mês impar. 05.

Faltam dois dias para o final – providencial e abençoadamente, Maio é mês de 31 dias.

Em Maio é outono e iniciam-se as chuvas em Salvador. Nuvens condensadas de vapores estranhos cobrem delicadamente a cidade. A chuva cai, intermitente, incessante, forte, fraca; fria. O chão torna-se naturalmente úmido; há poças na rua, lama nas calçadas e partículas de água em suspensão no ar. Casacos e guarda-chuvas. Deslizamentos e desabrigados, e o peso por gostar de chuva e gostar de Maio.

Em Maio, (único que percebo? possível...) há uma movimentação, uma energia nos que vivem. E esses, os que vivem, vivem; vivemos em Maio. Não é “sobre”, é “viver”. Maio é esta garantia, esta certeza.

Gosto de Maio pela identificação (ou necessidade de identificar-me). Sentimento de recíproca compreensão, reflexos revertidos. Maio, indecente e gentil, me expõem (a mim? a quem?) tal como penso que sou, ou melhor, tal como sinto que sou.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Limpa-vidro

Era um daqueles prédios de consultórios de dentistas. O corredor era comprido e estreito, não permitindo que alguém um tanto acima da média abrisse os braços a dispor sua envergadura. Punham-se, de um lado e de outro, várias portas de vidro, cada qual propagandeando, ao seu modo, o nome de seu dentista ou de sua clínica. A numeração dos consultórios, indicada por um quadrado também de vidro, na lateral das portas, iniciava-se no que seria o começo do corredor e desenvolvia-se, de forma crescente, do lado esquerdo, 701, 702, 703, etc., contornava a janela que marcava o que seria o fim do corredor e continuava do lado direito, 707, 708, etc., de tal forma que quem avançasse o corredor, do início ao fim, veria em ordem decrescente os números dos consultórios do lado direito. Estavam, em sua maioria, fechados e as luzes apagadas. Era quase nove da manhã.

A ajudante do consultório 705 conversava com a do 708; os consultórios eram um defronte ao outro. As moças estavam às portas de vidro, entreabertas. Esperavam a chegada dos respectivos patrões, dentistas que, estranhamente, acreditam que nove horas é nove e meia. Falavam baixo, na intensidade pedida pelas conversas íntimas, sobre qualquer coisa a cerca de uma delas, “aí eu disse a ele: ‘se você me trair...’” Estavam atentas ao movimento do corredor. Quando o elevador anunciava a sua parada no andar com um sonoro dindon seguido de um “sétimo andar, sobe”, ambas entravam por completo nos consultórios e esperavam quem quer que fosse passar, para então voltarem ao discurso; quase clandestinas.

Certa hora, ambas desapareceram e retornaram carregando cada qual um pano e um líquido azul dentro de um borrifador transparente; um limpa-vidro. Passaram a limpar as portas de vidros dos respectivos consultórios, enquanto mantinham inabalável a conversa. Limpavam enquanto conversavam ou conversavam enquanto limpavam? Sobretudo conversavam. Tinham em mãos seu álibi.

Ao fim do mês, a dentista do 705, dada às atividades domésticas, não entendia o porquê de se gastar tanto o limpa-vidro em seu consultório. Já o dentista do 708 apenas não reparava as manchas gordurosas inexistentes na porta do seu lustroso consultório.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Prenúncio Próprio do Presente

Ultimamente, tenho tido uma iminente falta de necessidade, me-bastança.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Epitáfio a 2008, salvas a 2009

Não escaparei da tarefa de transcrever(-me) a virada de ano. Faltam apenas três dias para o ano-bom (gosto dessa expressão, remota positividade e esperança): data-se 28 de dezembro de 2008. Encaro que não me custa nada umas tantas palavrinhas frente ao momento dialético, passado e futuro, velho e novo, penas e promessas, adeus e olá. Um dia que termina como outro qualquer, outro que começa como outro qualquer. E que carrega tanto, carrega tudo... Parei e pensei (como fazemos todos quando nos deparamos com o final) no ano que foi, no ano que vem. Sim, passou rápido; não, custou a passar. Tenho aqui, então, um epitáfio a 2008 e minhas salvas a 2009.

A 2008. 2008 não foi o melhor ano de minha vida, e isso não é um eufemismo para dizer que foi ruim, ou pior, o pior. É uma simples constatação. Tenho a sensação de que houve outros anos que foram melhores e que à época, inconsciente e infantilmente, enchi a boca e pronunciei, de mim para mim, que foi “o melhor ano de minha vida”. Repito, 2008 não foi o melhor, ressalvo, nem o pior ano de minha vida. (Significa algo? Significa muita coisa e talvez signifique nada). Foi 2008. Um dois, dois zeros e um oito. Não virá outro desses (um “nunca” caberia aqui sem receio algum, basta ajeitar a sintaxe).

Seria hipócrita se disser que olharei lá da frente para o ano que passa orgulhoso, contente, saudoso. Errei; pequei (os meus pecados, não os dos outros); esbarrei-me; feri-me e inflamou (dor, rubor, calor, edema); chorei, sim, como jamais chorara. Foi difícil, ruim.

Mas que eu não seja ingrato para com o zero-oito. Não passei incólume, com certeza não. Mas desinflamou; o tecido regenerou.

Mudei, sinto-me diferente, percebo ao mundo e a mim de forma distinta de outrora (umas viseiras que foram tiradas). Mudei exponencialmente. Nunca me experimentei tal qual agora. Cresci? Se sim, se não, não sei. Mas gosto assim, 2008; assim, cá como estou. Sinto-me, sei lá, mais completo (?), mais próximo de mim (?); sinto-me bem, mesmo que uma vozinha interior diga-me que continuo tal qual antes, mas sinto-me bem. Daí tira-se a importância desse dois-zero-zero-oito. Epitáfio: nem o pior, nem o melhor.

A 2009. Acredite quando eu digo que não embarco em 2009 com expectativas, planos, ambições. Até o presente momento não escrevi nenhuma lista de intenções para 2009 (ler mais, escrever mais, continuar malhando, flee this town, entrar menos na Internet, ser mais sociável, ser menos sociável, etc.), nem pretendo escrevê-la. Não critico os que as fazem, talvez aqueles que as fazem e largam-nas nas gavetas para nunca mais, mesmo assim observe o talvez. Sei da importância de possuir objetivos. (Não devo esquecer que a apatia de um dia não vale a vida e as possibilidades de um ano).

Mas sim, vestirei roupa nova na virada, na cor certa, pularei sete ondas (espero que assim seja possível), infelizmente esqueci-me das romãs, pensarei positivo (sempre, sempre, sempre: compromisso), entrarei em ressonância (tipo física) com as energias que fluirão no momento místico em que a Terra completar sua volta em torno do astro-rei. Saúdo, sim, um tanto apático e com sorriso levemente amarelo, 2009; mas subjetivamente esperançoso, carrego a esperança puramente sensitiva, aqui dentro de mim: saúdo-o passarinho, passarinho. (Encerro aqui antes que me torne mais incompreensível) .

Meu adeus a 2008, um beijo na testa e um afago carinhoso nos cabelos.

Minhas boas-vindas a 2009, em suave reverência, alas abertas; que venha, mas que o primeiro passo seja com o pé direito.

sábado, 20 de setembro de 2008

Em bordô

Encosto na parede do apartamento, sinto o calor do sol que se põem adiante, por entre os prédios da contramão. A persiana côa os raios dourados que invadem o quarto e cingem no chão. Um pedaço do mundo, rodando em vão, está ainda visível pela janela. A calçada se desenha em mosaicos de preto e branco, curvas contrastantes; engraçado, não há pessoas andando na rua neste momento. O semáforo fecha, e os carros param.

Você, diante de mim, me olha com teus olhos únicos, no castanho doce e inebriante. Em sua boca vai-se desenhando um leve sorriso (como eu gosto deste sorriso). Nessa hora, eu te olho, perdendo-se de mim. Você vira o rosto comicamente, rindo de nós. Olho meus pés, a madeira do chão, os raios de sol, teus pés. Umedeço os lábios. Em meu corpo, bate um coração e pulsa um sangue.

Como numa foto em preto-e-branco, como num filme europeu, como numa praça antiga, como num revoar de pombos, como num sopro de brisa ou no mormaço de um dia abafado, um silêncio, uma calmaria domina a atmosfera. Ainda te olho, e você vem até mim e me beija, ardendo. Derreto, sou maré de sol que vai abaixando em ondas brancas ao fim de tarde. Você sai, mas meus olhos ainda estão fechados. E teu sorriso agora é o meu sorriso. Reparo na tua calça jeans. Não consigo dançar teu reggae agora; estou tão, tão, não sei, blues? bossa nova?... não... MPB... Reparo no detalhe de tua calça jeans.

– Posso segredar-lhe algo? – suspiro inaudível, som ralo que sai da minha boca. Minha língua estala.

É o medo. Sim, medo. Não sabe, mas tenho, e tanto, tanto. O sol continua se pondo, sempre continua. É medo de que os círculos dourados no chão, impalpáveis, fujam correndo de mim. Eu vou lhe contando do meu medo em minha boca calada, em meus olhos mansos, semi-inquietos, em minha cara triste. Olho a janela, diversas vezes. Olho para você. Será que entende do meu medo? Será que pode curar-me? Ou é você o meu medo? O medo do retrocesso. E você devolve meu olhar, e meu medo se vai para longe. E você abaixa os olhos e meu medo volta como as flechas de ponta azul que penetraram Sebastião ao virar são.

Eu só quero te falar do meu medo. De você, soam palavras longínquas, eu tento prender-me a elas e voltar ao mundo, a você, não sei, mas é como se chovesse devagarzinho, em câmera lenta, em algum pedaço escuro de mim, como se fosse impossível sair do porão onde estou, mas de certa forma há você ainda, há sim. O ainda me arrepia. Engulo em seco. Te olho em desespero invisível. Você fala, não, não, sei que não é insensível a mim, – o que fala? –, – não importa –, você fala e sinto-me melhor. Meus olhos ainda estão inquietos, como se um ácido me consumisse aos poucos. Sim, meu medo. “Enxerga meu medo? Cura meu medo, por favor.” Não te culpo por não vê-lo, não o mostro. Não te culpo por não entendê-lo, não o entendo. Ou não me entendo. Estou vermelho bordô, num pseudo-tom-sobre-tom com o teu vermelho vivo.

Queria apenas um aconchego, aliás, não sei o que queria, o que quero em verdade. Mas não posso pedi-lo, não o que quero. Sinto ainda o calor quase insuportável da parede atrás de mim, não mais que o frio do meu medo; no fundo da alma, sabe o que há? Pois, por aí se desenha meu medo. Agora, lembro-me de uma rosa, não sei porque, mas lembro-me.

Vê-me perdido em mim, em nós, em um universo qualquer, um tronco de árvore, em um algo assim inalcançável. Pára o palavreado e apenas me olha. Como se entendesse de minh’alma, sapiente da maior das psicologias, me compreendia sem compreender, em sua espontaneidade. Peças de um quebra-cabeça que se encontram e se montam. Sorri. Devolvo o sorriso: meu bordô perde o sépia. Cristo chama Lázaro. Completo meu vazio com teus olhos. Desarmo-me, tremeria nessa hora. Você vem a mim, passo-pós-passo, olho teus pés desenhando um caminho no chão do quarto. Há sol ainda, dourado. Há sol em teus olhos, em teus cabelos. Em tua face, lânguida. Fecho os olhos, há sempre sol. O ar quente que sai de ti toca minha pele branca, que vai vermelhando em festa. Encontro dos lábios, secreto. Vermelhos.