quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Limpa-vidro

Era um daqueles prédios de consultórios de dentistas. O corredor era comprido e estreito, não permitindo que alguém um tanto acima da média abrisse os braços a dispor sua envergadura. Punham-se, de um lado e de outro, várias portas de vidro, cada qual propagandeando, ao seu modo, o nome de seu dentista ou de sua clínica. A numeração dos consultórios, indicada por um quadrado também de vidro, na lateral das portas, iniciava-se no que seria o começo do corredor e desenvolvia-se, de forma crescente, do lado esquerdo, 701, 702, 703, etc., contornava a janela que marcava o que seria o fim do corredor e continuava do lado direito, 707, 708, etc., de tal forma que quem avançasse o corredor, do início ao fim, veria em ordem decrescente os números dos consultórios do lado direito. Estavam, em sua maioria, fechados e as luzes apagadas. Era quase nove da manhã.

A ajudante do consultório 705 conversava com a do 708; os consultórios eram um defronte ao outro. As moças estavam às portas de vidro, entreabertas. Esperavam a chegada dos respectivos patrões, dentistas que, estranhamente, acreditam que nove horas é nove e meia. Falavam baixo, na intensidade pedida pelas conversas íntimas, sobre qualquer coisa a cerca de uma delas, “aí eu disse a ele: ‘se você me trair...’” Estavam atentas ao movimento do corredor. Quando o elevador anunciava a sua parada no andar com um sonoro dindon seguido de um “sétimo andar, sobe”, ambas entravam por completo nos consultórios e esperavam quem quer que fosse passar, para então voltarem ao discurso; quase clandestinas.

Certa hora, ambas desapareceram e retornaram carregando cada qual um pano e um líquido azul dentro de um borrifador transparente; um limpa-vidro. Passaram a limpar as portas de vidros dos respectivos consultórios, enquanto mantinham inabalável a conversa. Limpavam enquanto conversavam ou conversavam enquanto limpavam? Sobretudo conversavam. Tinham em mãos seu álibi.

Ao fim do mês, a dentista do 705, dada às atividades domésticas, não entendia o porquê de se gastar tanto o limpa-vidro em seu consultório. Já o dentista do 708 apenas não reparava as manchas gordurosas inexistentes na porta do seu lustroso consultório.