quinta-feira, 6 de março de 2008

A senhora, o cinza e a rima




A um olhar de distância, no outro lado da rua, a senhora anda. Apenas tons de cinza. O oco dos seus sapatos marrons contra a calçada de concreto seriam ouvidos, não fosse a prosopopéia de pessoas, prédios, carros, sinaleiras e seus ruídos próprios e alheios. Seu vestido reto, cor de grafite. A bolsa a tiracolo. Os cabelos grisalhos presos num coque. As rugas profundas. Os passos firmes, numa lentidão (típica dos anos), numa rapidez (típica dos vívidos), numa objetividade (típica dos ressurgidos). A quase corcunda nas costas, de palmeira que não enverga. Sob o pano grosso do vestido, as correntes, os fantasmas, as contrações, as cicatrizes, as brumas, os poucos sóis, os sangramentos, os poucos vermelhos, as poucas feitiçarias, as sombras, as (não) umidades, as flores murchas e desidratadas, as cinzas e as queimaduras do antigo charuto.

Ao longo da rua, carros estacionados, placas elevando-se do chão, transeuntes multiplicando-se. O prédio em negrito branco, desbotado e sujo, com seu amplo vão de entrada. O tapete puído e pisado. A livraria-café se abrindo à direita, bem a frente do prédio; sua ampla janela, e as cabeças entre os livros. Emanações de cheiros insípidos.

A senhora pára (uma exclamação abortada). A cabeça gira, analisa. Entra na livraria e foge do olhar. Eras depois, sai como entrou. E segue.

Logo após, um rosto jovem e amarelo salta do prédio. Esquerda, depois direita. Vê, ao longe, o coque grisalho por entre orelhões e postes e gentes, afastando-se. As pernas cumpridas, finas e desengonçadas põem-se a correr. O avental atrapalha. Ofegante, alcança-a. Ele toca-lhe o ombro. Ela vira (num virar de cadeira pesada sobre chão de madeira antiga). Ele entrega aquilo que levava em suas mãos, ainda quente. E fala. E o que diz se ouve:

- Senhora, deixaste cair tua rima.

Um sorriso de flor amarela. Uma explosão. Mármores e granitos rolando.

- Finalmente nasceu. Idéia velha... Trabalho de parto de mais de uma hora (que deveria ter sido gasta com a caracterização da associação actina-miosina em funções contráteis). Mas, tem nada não. =P

2 comentários:

Raísa disse...

faça um comentário. que comentário?
acabou de nascer, quentinho ainda

se ler de novo, nasce de novo?

Raísa disse...

esqueci não, bem.
tá lá no parágrafo do olfato : )