sábado, 20 de setembro de 2008

Em bordô

Encosto na parede do apartamento, sinto o calor do sol que se põem adiante, por entre os prédios da contramão. A persiana côa os raios dourados que invadem o quarto e cingem no chão. Um pedaço do mundo, rodando em vão, está ainda visível pela janela. A calçada se desenha em mosaicos de preto e branco, curvas contrastantes; engraçado, não há pessoas andando na rua neste momento. O semáforo fecha, e os carros param.

Você, diante de mim, me olha com teus olhos únicos, no castanho doce e inebriante. Em sua boca vai-se desenhando um leve sorriso (como eu gosto deste sorriso). Nessa hora, eu te olho, perdendo-se de mim. Você vira o rosto comicamente, rindo de nós. Olho meus pés, a madeira do chão, os raios de sol, teus pés. Umedeço os lábios. Em meu corpo, bate um coração e pulsa um sangue.

Como numa foto em preto-e-branco, como num filme europeu, como numa praça antiga, como num revoar de pombos, como num sopro de brisa ou no mormaço de um dia abafado, um silêncio, uma calmaria domina a atmosfera. Ainda te olho, e você vem até mim e me beija, ardendo. Derreto, sou maré de sol que vai abaixando em ondas brancas ao fim de tarde. Você sai, mas meus olhos ainda estão fechados. E teu sorriso agora é o meu sorriso. Reparo na tua calça jeans. Não consigo dançar teu reggae agora; estou tão, tão, não sei, blues? bossa nova?... não... MPB... Reparo no detalhe de tua calça jeans.

– Posso segredar-lhe algo? – suspiro inaudível, som ralo que sai da minha boca. Minha língua estala.

É o medo. Sim, medo. Não sabe, mas tenho, e tanto, tanto. O sol continua se pondo, sempre continua. É medo de que os círculos dourados no chão, impalpáveis, fujam correndo de mim. Eu vou lhe contando do meu medo em minha boca calada, em meus olhos mansos, semi-inquietos, em minha cara triste. Olho a janela, diversas vezes. Olho para você. Será que entende do meu medo? Será que pode curar-me? Ou é você o meu medo? O medo do retrocesso. E você devolve meu olhar, e meu medo se vai para longe. E você abaixa os olhos e meu medo volta como as flechas de ponta azul que penetraram Sebastião ao virar são.

Eu só quero te falar do meu medo. De você, soam palavras longínquas, eu tento prender-me a elas e voltar ao mundo, a você, não sei, mas é como se chovesse devagarzinho, em câmera lenta, em algum pedaço escuro de mim, como se fosse impossível sair do porão onde estou, mas de certa forma há você ainda, há sim. O ainda me arrepia. Engulo em seco. Te olho em desespero invisível. Você fala, não, não, sei que não é insensível a mim, – o que fala? –, – não importa –, você fala e sinto-me melhor. Meus olhos ainda estão inquietos, como se um ácido me consumisse aos poucos. Sim, meu medo. “Enxerga meu medo? Cura meu medo, por favor.” Não te culpo por não vê-lo, não o mostro. Não te culpo por não entendê-lo, não o entendo. Ou não me entendo. Estou vermelho bordô, num pseudo-tom-sobre-tom com o teu vermelho vivo.

Queria apenas um aconchego, aliás, não sei o que queria, o que quero em verdade. Mas não posso pedi-lo, não o que quero. Sinto ainda o calor quase insuportável da parede atrás de mim, não mais que o frio do meu medo; no fundo da alma, sabe o que há? Pois, por aí se desenha meu medo. Agora, lembro-me de uma rosa, não sei porque, mas lembro-me.

Vê-me perdido em mim, em nós, em um universo qualquer, um tronco de árvore, em um algo assim inalcançável. Pára o palavreado e apenas me olha. Como se entendesse de minh’alma, sapiente da maior das psicologias, me compreendia sem compreender, em sua espontaneidade. Peças de um quebra-cabeça que se encontram e se montam. Sorri. Devolvo o sorriso: meu bordô perde o sépia. Cristo chama Lázaro. Completo meu vazio com teus olhos. Desarmo-me, tremeria nessa hora. Você vem a mim, passo-pós-passo, olho teus pés desenhando um caminho no chão do quarto. Há sol ainda, dourado. Há sol em teus olhos, em teus cabelos. Em tua face, lânguida. Fecho os olhos, há sempre sol. O ar quente que sai de ti toca minha pele branca, que vai vermelhando em festa. Encontro dos lábios, secreto. Vermelhos.




sábado, 13 de setembro de 2008

Somos meninos

Somos meninos.
somos meninos
e falamos de boca cheia,
arrotamos, bufamos, tiramos meleca do nariz.
Espiamos meninas pelo buraco da fechadura,
somos meninos,
temos Playboy escondida no quarto.
Somos meninos
rimos alto, brincamos de bater,
somos meninos
e andamos de bicicleta,
corremos, pulamos,
empurramos, caímos, nos ralamos,
não choramos.
Somos meninos e brigamos,
na escola, na rua, no playground.
Já fomos expulsos da sala, já levamos advertência.
Somos meninos, adoramos educação física e matemática,
detestamos português e a professora caquética.
Somos meninos
e não resistimos aos seus mistérios,
Somos meninos
e não dizemos não (nunca).
Somos meninos e nos apaixonamos
pela garota cujos seios são os primeiros a despontar,
tão cheios,
e as curvas as primeiras a rebolar,
mas damos o primeiro beijo na menina magricela
de parca beleza, feia mesmo.
Somos meninos e enrabamos galinhas na roça.
Somos meninos e soltamos pipa na praia.
Somos meninos e subimos em pé de pau.
Somos meninos e jogamos futebol.
Somos meninos e fazemos coisas-de-meninos.
Somos meninos e não fazemos coisas-de-meninas,
nem permitimos que elas façam as coisas-de-meninos.
Quebramos braço, perna, pé, testa, cabeça...
Levamos mil quinhentos e cinqüenta e onze pontos.
Somos meninos
e nossas mães partem com destreza
nossos cabelos molhados
enquanto bronqueiam, ralham, falam
ameaçam, batem.
Enquanto nos mandam ter juízo, cuidado, “vai com Deus”.
Somos meninos
e nossos pais nos levam a Fonte Nova, Maracanã, Mineirão
e nos ensinam qualquer coisa da mecânica do carro.
Somos meninos e queremos saber dos namoros de nosso irmão.
Somos meninos e lemos o diário de nossa irmã.

Somos meninos, não falamos de sentimentos.
Somos meninos, não choramos. (Não podemos)
Somos meninos, não temos medo.

Somos meninos,
entre as pernas temos um pinto
e mijamos em pé.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Toda certeza do mundo

Fora Ninguém,
quem tem?


- perdoem-me a rima (ou o eco).

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O Salto de Ícaro

- Liberdade? Como se escreve, pai? Como se fala, pai? Pai, Liberdade se sente?... dói? Tem gosto de quê? Deve ter um gosto de vento... Sol? Verei o sol? O mar? As flores... Ah! Em meus olhos caberão tantas divindades, pai? Irei explodir e partir em milhões de pedaços! Cor? Sabor? Ardor? Amor? Esquecer-me-ei dessa imensidão de negro, dessas paredes confusas, dessas rachaduras? Conte-me, mais, pai, conte-me mais. Conte-me das árvores. Dos seios. Dos cabelos. Dos olhos. Dos tecidos. Conte-me da vida lá fora. Quero enrolar-me na vida como um inseto que cai na teia da aranha e começa a se debater, debater, até estar completamente preso, impossível fugir, restando somente à espera pela boca da aranha. Quero ser devorado pela Aranha-Vida, pai, quero que ela me coma todinho, pedaço por pedaço. E, mesmo enquanto ela estiver me comendo, me trucidando, a Aranha-Vida, eu estarei me debatendo, me lambuzando em vida, me afogando em vida, me transbordando em vida! Ah, pai querido. Meus dedos alcançarão tudo. Meus pés correrão tudo. Minha mente abarcará tudo. Eu serei tudo, meu pai, tudo.

Pai, veja, são os pássaros de novo. E quantas penas, pai! As penas caem, pai. São brancas, tão brancas. Como são macias, pai. São muitas, muitas, muitas, muitas, muitas...

Voar, pai? Como os pássaros?

- Ícaro, abre tuas asas, meu filho. VOA, Ícaro! VOA!

Voa e verás mar, terra, sol, céu, meu filho. Voa, Ícaro, que a vida te espera... Voa, filho, o labirinto não mais existe... Voa, Ícaro. Meu menino. Voa!

Flor, bicho, gente, meu filho.

O vinho quente descerá a garganta até inebriar-te. Mastigarás a textura da carne suculenta, o seco do pão, o doce da maçã, o amargo da azeitona. Sim, meu menino, teus olhos explodirão de tanta vida. Tanta vida, Ícaro, tanta vida. Teus pés afundaram em areia, lama, água, pedra. Tuas narinas aspirarão odores mil – salva, menta, hortelã, alecrim, alfazema... Verás a criatividade do homem. À noite, quando é escuro – não, o escuro da noite é lindo, filho meu, lindo – há estrelas e uma lua branca, branca. Ao dia, quando é claro – sim, filho, verás o claro – nuvens, nuvens, nuvens e um sol redondo, imponente. O barulho do mar, sem o eco do labirinto, é uma canção, meu filho, não um lamento. É um riso deslavado, não um consolo longínquo. Teus pensamentos não te assustarão mais, juro-te. Teus braços e tuas pernas passearam pelo universo infinito. Abraçarás, na tua juventude, o mundo e agarrarás com tamanha força e eu rirei, como rirei de ti, meu filho! Gargalharei ao ver tua face sob a vida, tua face vitoriosa, teu sorriso infantil, teus cabelos ao vento. Sim, sim, sim. Dançarás. Dançarás, sentindo cada pedaço de teu corpo, dançarás até tuas juntas doerem e doerem e não se cansarás jamais. Fora do labirinto, serás Deus, meu menino. Esquecerás, sim, esse odor fétido de carne apodrecida... Já te disse, teu nariz não terá tempo... Ah, meu filho! Sentirás pele tão quente quanto a tua a roçar-lhe o corpo, num toque de mãos, num estalar de lábios que se encontram numa eternidade ínfima de tempo. Estrelas estourarão e cairão do céu, sim, sim, meu filho. Acredites, não ria de mim, seu tolo... Quando isso vier a acontecer, dar-me-ás razão... Ícaro! Ver-te-ás num reflexo de fonte qualquer... Conhecer-te-ás... Como és lindo, meu filho. Como és lindo. Tu foste feito para o mundo fora do sofrimento deste maldito labirinto, és de Apolo, Dionísio, Zeus? Não sei, meu filho. És da Liberdade, Deusa mãe!

Ícaro, abre tuas asas, meu filho. VOA, Ícaro! VOA!

Voa e verás mar, terra, sol, céu, meu filho. Voa, Ícaro, que a vida te espera... Voa, filho meu, o labirinto não mais existe... Voa, Ícaro. Meu menino. Voa!

- inspiração: peça-espetáculo "Labirintos", estava em cena no Teatro Vila Velha.