Em silêncio místico, o carro prateado puxado por duas corsas em galope percorria as reentrâncias da terra – vales, morros, planícies, depressões. A aura, inda fina, da Lua crescente guiava o avanço, como lanterna, na penumbra da noite vasta.
Após a fenda rochosa do largo monte, abria-se um campo de pelagem verde-esmeralda, em que se deitava um riacho plácido. Algumas oliveiras despontavam do chão. Adiante, as árvores iam se condensando, sobrepondo-se umas às outras.
As corsas pararam. Do carro, saltou Deusa, dona de si. O solo aos seus pés estremeceu n’alma: quem o pisava não era rainha, não era esposa, não era amante, não era mãe; quem o pisava não era filha, não era irmã. Era a Virgem Caçadora, Ártemis, em sua primeira caçada.
Caminhou em direção ao riacho. Abaixou-se de sua grandeza e, ajoelhada, ouviu as águas que lhe segredavam o que já sabia. Novamente em pé, a brisa noturna sussurrou-lhe sua certeza, certeza de caçadora experiente. Ah, autonomia. Sua caça estava próxima.
Uma túnica branca presa por um pedaço rubro de pano cobria-lhe o corpo bem formado. Trazia a aljava sobre a espádua e o arco em sua mão direita. Fitas de couro amarravam as sandálias aos seus calcanhares. À cintura, uma bolsa de caça. Sob a cabeça, uma pequena tiara em que se distinguia o quarto crescente.
Seu olhar fixou-se na floresta, num semblante imperturbável. Ah, individualidade.
Os traços de sua face refletiam pura essência. O rosto era largo, mas bem equilibrado. Não tinha olhos passivelmente grandes. Eram pequenos, castanhos e sinceros; eram olhos de águia, olhos de coruja, de ver ao longe. Eram olhos de presa, veado vencido, lebre abatida. Seus lábios, pois, não eram intumescidos de lascívia fútil. A boca era fina, felina, faca de curtume.
Não mais que de repente, Diana pôs-se a correr. Na marcha firme, viam-se os músculos rijos e definidos de suas pernas, um quê de homem, inexistente. Ah, liberdade.
O cabelo voava ao vento frio. De tão sem beleza, de quão belo. Era de um castanho cor de tronco, de fios finos, fortes e ondulados. Divisavam-se tranças perdidas, feitas por mãos precisas e ligeiras, que ora pendiam a face, ora corriam aos ares.
A Arqueira adentrou a floresta, passando pelos cedros, mognos, ninfas, demônios; saltando troncos caídos e rochas secas. O instinto de caçadora guiava-lhe à presa. Os passos eram firmes. Ia nua, virgem, a sua primeira caçada.
Numa clareira, a Pura parou. Ali, ali, sim. Um grande veado, entre as ramagens de um pequena árvore. De cabeça baixa, quase se podia ouvir o capim sendo arrancado da terra e seus dentes triturando-o. Num pré-êxtase, Diana ofegou vitoriosa, sentindo-se total. Da aljava, puxou uma seta. Retesou o potente arco; mirou o animal em seu peito.
O bicho, num estremecimento do instinto, ergueu a cabeça. No movimento, os chifres ressoaram no ar. Os olhos varreram as árvores, o coração pulsante. A sobrevivência sentia um doce veneno mortal que o ar trazia. Ali, ali, sim. Em mármore banhado pelo luar, sua Senhora diante de si. E contemplou a durante a eternidade. Sua honra. Era leal à Dona.
Olho contra olho, num duelo de castanho.
Diana contraiu-se num todo. O arco era um membro de seu corpo, igualmente contraído. O vento não ousava tocar-lhe o cabelo, as pálpebras não mexiam. Na brancura de sua pele, virgem sim, mas que se diga livre-selvagem (ah), em seu colo feminino e seus braços, um estirado, outro flexionado, o desenho de sua força. Era um mármore sem escultor.
O bicho apenas olhava, numa leve apreensão, mas entregando-se, aberto o peito, coroado de grinalda, àquela rígida e poderosa. Sentiu o leite materno descer-lhe a goela e o ar quente sair-lhe pelas narinas dilatadas. Havia um grito dentro de si, um Hino à Ártemis. Fogo queimava-lhe as entranhas. Fogo não menos quente que aquele contido na Dama a sua frente. E ambos sabiam do fogo do outro e era o fogo que os unia. Fogo que ardia e tinha que arder. Fogo tenro.
Ártemis dardejou.
A seta, filha de Hefesto, disparou na escuridão em direção ao alvo. A ponta afiada de pura prata; a haste de madeira branca; as penas de garça. Cortava o ar em sua viagem, num silvo longo e inaudível. Ia sorrateira, falo feminino. A haste se contorcia em segredo. Toda criação do mundo em seu caminho. Zéfiro cedeu passagem e fechou os olhos.
O brilho da ponta da flecha tirou o bicho de seu transe. As pupilas num instante dilataram-se, as patas traseiras contraíram-se sobre o solo. Tinha também a lealdade ao ser-veado. Era a aranha sobrevivência que arranhava o por dentro. Na lealdade a si, a lealdade a Ela-Deusa. Bicho, ruge, brame! Bicho, foge! Saltou.
Ártemis, a Infalível, conhece seus filhos. Ah, sim, Infalível.
A seta atingiu o coração da aranha do veado. Infalível. Sua ponta perfurou, na criação do homem e da mulher, a pele-couro do animal, após passar-lhe os pêlos sedosos. Foi dilacerando a pele-couro, a proteção, a maior barreira; Hímen. Adentrou, então, raio de Zeus; matou, então, estalar de língua.
Um grosso e escuro sangue escorreu pelo peito do animal. A seta fincada em si. Tombou em pleno salto, sem espasmos – herói.
Clímax! Diana em júbilo.
Iria, agora, avançar a sua vítima. Beijar-se-lhe-ia a face? Tapar-se-lhe-ia os olhos? Abençoar-se-lhe-ia? Com faca, arrancar-se-lhe-ia o couro? Caçada concluída, primeira da Deusa.
A Virgem-Virgem Caçadora, não, agora era a Virgem Caçadora. Diana!
Ártemis!
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